Escrevinhanças

terça-feira, 14 de julho de 2015

A PERCEPÇÃO QUE TINHA DA VIDA

A percepção que ela tinha de sua vida é de que sempre tivera que fazer muita força.
Uma força louca pra não pirar na casa dos pais, onde não havia nenhum senso de segurança, nenhuma certeza, nenhuma segurança, nenhuma atenção. Violência doméstica, abandono, falta de cuidados básicos.
Seu mundo era ou lá fora, ou dentro dos livros. A casa para onde chegava todas as tardes, depois de estudar e trabalhar era simplesmente um cenário com um palco abandonado, escuro e deserto, com alguns móveis mal distribuídos, quieto, gelado, vazio, sem calor humano, sem nenhum sinal de que ali havia pessoas que o habitavam.
A sensação do mundo interno da casa era reforçada pelo fato de ser sempre uma casa nova, num bairro novo, num país novo.

Fez força para se adaptar em novas escolas, novos bairros, aprender novas línguas, novas culturas. Fez muita força!!! Amigos já nem tentava fazer... a cada nova mudança os perdia... Aprendeu muito cedo a lidar com perdas.

Comia e ia pro quarto ler.
Os livros sempre tinham sido sua certeza.
Lá encontrava histórias de famílias normais, de pessoas boas, de pais amorosos e de que “o amor até existe...”.

Casou com um homem escolhido por instinto. Sabia que ele seria um bom provedor pra sua cria e não teve que fazer muita força para amá-lo. Era o seu compromisso de que teria um lar normal, seguro, amoroso e acolhedor para os filhos que viriam. A gente escolhe amar. A gente se empenha em amar, o amor não acontece simplesmente.

Fez muita força para ter um lar feliz, para ser uma boa companheira, para se desenvolver intelectualmente para acompanhar o marido. Frequentou com ele altas rodas de excelentes profissionais com elegância, inteligência e charme.
Gostava de cozinhar porque sempre achou que o aroma de comida pronta e fumegante, que era sentido na hora que abriam a porta de casa, era a tradução de todo amor que sentia por aquelas três pessoas que formavam a família que teve. Trabalhou, ralou no trânsito, levou as crianças para todos os cursos e médicos e ortodentistas necessários para dar a eles uma boa educação e cuidar deles como nunca foi cuidada. O exemplo dos pais serviu para que tivesse uma noção claríssima do que não fazer. Foi mãe amorosa, cuidadosa, acolhedora, amiga, companheira e com a casa sempre aberta para todos os amigos dos filhos. Sabia como era importante eles terem amigos. Foi a Mamãe de “Papai Sabe Tudo”...

A parte de ser mãe foi fácil, pois confiava em seus instintos. Foi mãe bicho, mãe que sente o que os filhos precisavam, na hora que precisam. Lia muito. Foi winnicottiana antes de ler Winnicott.
Quando o casamento começou a se fragmentar, fez muita força pra manter ele inteiro. Levava cestas de piquenique com queijos e vinho na hora do almoço para o parque, para minimamente poder compartilhar um pouco do dia a dia e da intimidade com o marido.
Inventou caminhadas juntos para que pudessem estar mais perto. Inventou aulas de dança, passeios e finais de semana na praia. Fez muita força para manter a chama do casamento pelo menos no mínimo.

Fez muita força novamente para se manter sã depois da separação! Passou anos lutando contra depressões e simplesmente não conseguiu aceitar que seu sonho de um casamento feliz, uma família estruturada, tinha falhado. Sentiu-se derrotada. Impotente.
E passou muito tempo com raiva dos contos de fadas que lia quando era criança, pois os contos prometiam que se a gente fizesse muita força, daria certo, e a princesa seria premiada com uma vida feliz.

Durante os 20 anos de separada, navegou pelos estágios de luto de Kübler Ross, ora passando pela raiva, ora pela negação, ora pela negociação, muitas e longas vezes pela depressão.  Finalmente, (infelizmente) entrou no estágio da aceitação. Pesarosa, mas aceitação.

Está oca. Vazia. A figura do marido lá no horizonte a fazia caminhar pra frente.
Seu útero chora. A dor nos falecidos ovários continua lá... baixinha... lembrando-lhe que sua feminilidade acabou. Que sua vida amorosa acabou. Que sua vida sexual acabou.
Aceitar que ele nunca mais vai ficar com ela a faz desaparecer como mulher. Agora é só gente. Não é mais mulher. É idosa, invisível, sem gênero.

Separou.

E dentre todas, a perda que mais latejava era a do muro mágico, invisível, do casamento, que certamente a cerceava, mas também a protegia.

Entrou no quarto de hospital e viu a amiga deitada na cama, a face denunciando a recente cirurgia. O marido, os parentes, os amigos, todos em volta, preocupados,
a bancada cheia de flores e chocolates
o zum zum de conversas sobre a cirurgia, sobre quem ia casar, quem ia ter bebê, quem viajou...
O muro mágico e invisível da amiga...

... e se sentiu penetra...

Era como se ela, diabética de amor e carinho, entrasse numa confeitaria e visse tudo aquilo que desejava... mas não podia comer.
Não podia se nutrir de todo aquele açúcar, de todo aquele afeto, de toda aquela proteção.

E mais uma vez se sentiu sem bordas, sem contenção,
com os contornos de seu corpo e de sua alma se esfumaçando,

perdendo a definição do propósito de sua vida diabética.

domingo, 31 de maio de 2015

WORDS

She sits and reads
Hours in a row

words distract her …


So she won’t hear the voices in her mind



VANITY

Vanity was ripped off me with violence.

It wasn’t a merciful, compassionate process.
It didn’t give me time
to slowly  get used to the idea.
It was ruthless, cruel as our final hour.

My mind sees me youthful and tender,
But the mirror shows the sorrows I carry
Disguised as overflows on my body’s silhouette,
Burdens of mournings not digested,
Disillusions not accepted.

The ideal dream not fulfilled,

Failure printed in the wrinkles of my face.
1994

Foi o ano em que supostamente a ficha dela deveria cair.
Em junho ou julho ele comprou um Jeep. No fundo de sua cabecinha tola e ingênua, uma luzinha vermelha de alerta se acendeu, mas ela não deu muita bola. Assim como nos 24 anos de casada não quis admitir que ele não a amava genuinamente.

Vou explicar. Ele amava o papel e a função que ela representava, aliás muito bem.
Era a perfeita dona de casa, a mãe bicho, instintiva que cuidava da cria como uma leoa carinhosa, mas feroz se necessário, a companheira batalhadora que também ajudava a pagar as contas da casa.
O que ele não conseguia enxergar era o adicional.
A sensibilidade, a criatividade, a inteligência, a cultura, o refinamento e os valores baseados numa ética humanitária que ela tinha.
Quando ele dizia que a amava, ela respondia: você não me ama, pois você não me conhece...

Pois bem... tudo começou com um Jeep.
Ela sabia de ouvir falar, de histórias que ouvia de amigas, aliás, corria uma lenda urbana, que homens quando chegam à andropausa... (sim, ela existe sim, minha amiga) compram um jipe porque tem mais chance de cantar mulheres...

Pois bem, o Jeep foi um alerta que resolveu ignorar.

Setembro:
Em setembro ela decidiu que já era artista suficiente para abrir seu próprio atelier de pintura. Tímida, buscando nele a segurança que lhe faltava, um dia disse, como quem não quer nada: “acho que vou alugar uma casinha pra montar meu atelier”.
Ele ouviu o “como quem não quer nada”.
“Pra que? O quarto de empregada não está bom pra pintar?”
Nem mesmo as três exposições já programadas pra Brasília, Belo Horizonte e uma nos Estados Unidos, curada pelo Consulado Americano, vestiram-na de “artista plástica”. Se não foram suficientes para validá-la, como seriam suficientes pra ele?


É que na cabecinha dela, que misturava contos de fadas com Erich Fromm, um parceiro amoroso dava asas, encorajava o objeto amado a voar. O dela, parece que prefiria-a rasteirinha,
 (c mintende?)

YELLOW

She needed some yellow in her life.

She had known white in the icy winter mornings,
She had felt red in the rages life had taught her.

Blue was a constant in her troubled mind,
Purple surrounded her in the lights of falling evenings.

Even green made her wonder
Whether there’s meaning
In life’s ongoing cycle.

But yellow… ah, yellow

Her soul craved mind-numbing yellow
… to sedate the pain

of her colorless hopelessness.

DO OUTRO LADO

Do outro lado está a menina que brincava de amarelinha
Do outro lado está a menina que se apaixonava pelo vizinho
Do outro lado está a noiva radiante rainha de seu casamento
Do outro lado está a mãe bicho que lambeu sua cria
Do outro lado está a mulher que desenvolveu mil talentos

Um muro separa duas realidades:

Uma solar, radiante
Outra opressiva, paralisada



Ela só precisa cruzar o muro