A PERCEPÇÃO
QUE TINHA DA VIDA
A percepção
que ela tinha de sua vida é de que sempre tivera que fazer muita força.
Uma força
louca pra não pirar na casa dos pais, onde não havia nenhum senso de segurança,
nenhuma certeza, nenhuma segurança, nenhuma atenção. Violência doméstica,
abandono, falta de cuidados básicos.
Seu mundo
era ou lá fora, ou dentro dos livros. A casa para onde chegava todas as tardes,
depois de estudar e trabalhar era simplesmente um cenário com um palco
abandonado, escuro e deserto, com alguns móveis mal distribuídos, quieto,
gelado, vazio, sem calor humano, sem nenhum sinal de que ali havia pessoas que
o habitavam.
A sensação
do mundo interno da casa era reforçada pelo fato de ser sempre uma casa nova,
num bairro novo, num país novo.
Fez força
para se adaptar em novas escolas, novos bairros, aprender novas línguas, novas
culturas. Fez muita força!!! Amigos já nem tentava fazer... a cada nova mudança
os perdia... Aprendeu muito cedo a lidar com perdas.
Comia e ia
pro quarto ler.
Os livros
sempre tinham sido sua certeza.
Lá encontrava
histórias de famílias normais, de pessoas boas, de pais amorosos e de que “o
amor até existe...”.
Casou com um
homem escolhido por instinto. Sabia que ele seria um bom provedor pra sua cria
e não teve que fazer muita força para amá-lo. Era o seu compromisso de que
teria um lar normal, seguro, amoroso e acolhedor para os filhos que viriam. A
gente escolhe amar. A gente se empenha em amar, o amor não acontece
simplesmente.
Fez muita
força para ter um lar feliz, para ser uma boa companheira, para se desenvolver
intelectualmente para acompanhar o marido. Frequentou com ele altas rodas de
excelentes profissionais com elegância, inteligência e charme.
Gostava de
cozinhar porque sempre achou que o aroma de comida pronta e fumegante, que era
sentido na hora que abriam a porta de casa, era a tradução de todo amor que
sentia por aquelas três pessoas que formavam a família que teve. Trabalhou,
ralou no trânsito, levou as crianças para todos os cursos e médicos e
ortodentistas necessários para dar a eles uma boa educação e cuidar deles como
nunca foi cuidada. O exemplo dos pais serviu para que tivesse uma noção
claríssima do que não fazer. Foi mãe amorosa, cuidadosa, acolhedora, amiga,
companheira e com a casa sempre aberta para todos os amigos dos filhos. Sabia
como era importante eles terem amigos. Foi a Mamãe de “Papai Sabe Tudo”...
A parte de
ser mãe foi fácil, pois confiava em seus instintos. Foi mãe bicho, mãe que
sente o que os filhos precisavam, na hora que precisam. Lia muito. Foi
winnicottiana antes de ler Winnicott.
Quando o
casamento começou a se fragmentar, fez muita força pra manter ele inteiro.
Levava cestas de piquenique com queijos e vinho na hora do almoço para o
parque, para minimamente poder compartilhar um pouco do dia a dia e da
intimidade com o marido.
Inventou
caminhadas juntos para que pudessem estar mais perto. Inventou aulas de dança,
passeios e finais de semana na praia. Fez muita força para manter a chama do casamento
pelo menos no mínimo.
Fez muita
força novamente para se manter sã depois da separação! Passou anos lutando
contra depressões e simplesmente não conseguiu aceitar que seu sonho de um
casamento feliz, uma família estruturada, tinha falhado. Sentiu-se derrotada.
Impotente.
E passou muito
tempo com raiva dos contos de fadas que lia quando era criança, pois os contos
prometiam que se a gente fizesse muita força, daria certo, e a princesa seria
premiada com uma vida feliz.
Durante os
20 anos de separada, navegou pelos estágios de luto de Kübler Ross, ora
passando pela raiva, ora pela negação, ora pela negociação, muitas e longas
vezes pela depressão. Finalmente, (infelizmente)
entrou no estágio da aceitação. Pesarosa, mas aceitação.
Está oca.
Vazia. A figura do marido lá no horizonte a fazia caminhar pra frente.
Seu útero
chora. A dor nos falecidos ovários continua lá... baixinha... lembrando-lhe que
sua feminilidade acabou. Que sua vida amorosa acabou. Que sua vida sexual
acabou.
Aceitar que
ele nunca mais vai ficar com ela a faz desaparecer como mulher. Agora é só
gente. Não é mais mulher. É idosa, invisível, sem gênero.